Sandra Maria Francisco de Amorim
Por que 18 de Maio?
Há 119 anos atrás, em 18 de maio de 1898, nascia o maior hospital psiquiátrico do Brasil. A primeira colônia agrícola do Asylo de Alienados do Juquery abria suas portas para abrigar os mais diversos tipos de excluídos da sociedade de então: eram cerca de 80 pessoas, entre mendigos, marginais, negros e pessoas com transtornos mentais. O nascimento do Juquery inaugura no Brasil a medicina alienista e ocorre num cenário republicano ligado ao mercado, transparecendo a característica higienista do momento – que tem como traço o conceito de limpar as ruas, sanear a imagem e o espaço urbanos, tirando da vista tudo que implique em estorvo à produção: prostitutas, mendigos, pobres, negros, enfim, um ‘pool’ de pessoas que não respondia à produção, representante de um proletariado degenerado (qualquer semelhança com algumas situações observadas hoje não é mera coincidência!!).
Houve expansão por todo território nacional de “asilos” e por muito tempo, o tratamento oferecido às pessoas com transtornos mentais dos mais diferentes tipos, os ditos “loucos”, tiveram como recurso único e exclusivo o hospital psiquiátrico, instituição de produção de exclusão, segregação, violência e, muitas vezes, morte.
De lá para cá uma longa e dolorosa história tem sido desconstruída , uma história de violação de direitos, na qual gestores, sociedade civil e científica se omitiram por muito tempo.
Desde a década de 70, a necessidade de mudança na assistência à saúde mental no Brasil é pauta na agenda de muitos segmentos da sociedade dentre estes, a organização do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental, que nasce em 1978, a partir de graves denúncias e da greve dos funcionários de hospitais psiquiátricos. Nesse ano ocorreu o 1º Congresso dos Trabalhadores de Saúde Mental. Não podemos nos esquecer que esse movimento social reflete os avanços da participação social que permitiram a redemocratização do país, após longo período de ditadura.
Como consequência desse movimento, na década de 80 assistimos importantes medidas de humanização da assistência promovidas pelo setor governamental nos hospitais psiquiátricos federais e de alguns estados. No entanto, o segmento hegemônico na atenção à saúde mental no Brasil, o setor privado contratado, que teve grande incremento nos anos 60 e 70, permaneceu alheio a este movimento.
Em 1987, e aí já havíamos nos despedido do período ditatorial após a realização da 1º Conferência Nacional de Saúde Mental, um grupo de profissionais, decepcionado com os ínfimos resultados dos esforços, resolveu radicalizar realizando 2º Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, com o lema "POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS".
Os resultados desse movimento culminaram com a realização da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1992). No relatório da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental apresentam-se as reivindicações de garantia dos direitos conquistados e adquiridos na Constituição Brasileira que havia sido aprovada em 1988, para a consolidação da reforma em saúde mental no país.
Nessa ocasião, também foi instituído o dia 18 de maio como o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, se posicionando no sentido de negar o manicômio como forma de tratamento e propondo novas possibilidades terapêuticas, fazendo uma exigência prática que os hospícios fossem substituídos por outros serviços capazes de garantir dignidade e liberdade às pessoas com transtornos mentais.
Este movimento está historicamente ligado à defesa dos direitos humanos, como também incentiva a militância política e social contra a violência institucional praticada nos espaços manicomiais. Conta com a participação de usuários, familiares, profissionais de saúde mental, diversas entidades de classe, sindicais e ONG’s, tem sido responsável desde então pela colocação em cena de uma nova questão: a possibilidade de ruptura da exclusão imposta às pessoas com transtornos mentais. É preciso ter claro que não se trata de negar a existência da loucura. E nem de simplesmente abrir as portas dos manicônios como muitos críticos afirmam.
Entre 1993 e 1999 foram realizados quatro Encontros Nacionais da Luta Antimanicomial e em abril de 2001, finalmente é aprovada a Lei 10216, denominada lei Paulo Delgado, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, a extinção progressiva dos manicômios, redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Nasce uma nova forma de pensar a assistência à saúde mental, denominada Reforma Psiquiátrica. A pessoa com transtorno mental passa a ser vista como sujeito/cidadão e não mero objeto de intervenção. Ao menos em tese. O conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, a reforma tem avançado indiscutivelmente, porém marcada por impasses, tensões, conflitos e muitos desafios.
É preciso destacar que todo esse processo conhecido como “reforma psiquiátrica” no Brasil transcorreu influenciada também por uma intensa discussão e transformação nas normatizações no campo da saúde mental em todo o mundo.
Desde a experiência da Itália, conduzida por Franco Basaglia na década de 60, o ideal da sociedade sem manicômios vem sendo debatido. A lei italiana foi aprovada em 1978 e pela primeira vez no mundo ocidental, todos os cidadãos readquirem pleno direito de cidadania política e civil.
Outro marco internacional ocorre em 1990 quando realizou-se em Caracas, na Venezuela, a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica no Continente, convocada pela Organização Panamericana da Saúde/Organização Mundial da Saúde. A Conferência produziu a chamada "Declaração de Caracas" que propunha basicamente: a superação do hospital psiquiátrico como serviço central da atenção em saúde mental; a humanização dos hospitais psiquiátricos; e a ampliação dos direitos das pessoas com transtornos mentais. Os princípios estabelecidos na Conferência de Caracas (1990) tornaram-se referência fundamental para o movimento da saúde mental.
Em 1991 uma RESOLUÇÃO DA ONU trata da proteção das pessoas com transtorno mental e melhoria da assistência em saúde mental.
No fim do século XX (e agora volto a falar do Brasil especificamente), definitivamente se instala no campo ideológico, político e cultural, uma luta até então restrita ao interior das instituições, a fim de enfrentar o forte poderio econômico dos "empresários da loucura”, cujos interesses dominavam as instâncias políticas governamentais responsáveis pela destinação dos recursos disponíveis para o financiamento da Saúde Mental Pública. Uma luta pela criação de serviços abertos e dignos para realizar a assistência às pessoas com sofrimento mental, garantindo e efetivando seus direitos de cidadão, criando condições para a sua inserção e expressão na sociedade.
Concomitante às reformas propostas, a mobilização da sociedade em torno da questão vem aos poucos impondo uma nova ética, de respeito às pessoas em desvantagem, de maior tolerância com a diferença e de fortalecimento dessas pessoas perante as instituições.
Hoje, quando celebramos 25 anos da Luta Antimanicomial, muita coisa já pode ser comemorada.
A reforma sanitária, implantação do Sistema Único de Saúde. a promulgação da Lei 10216 propõem mudanças paradigmáticas. O número de leitos psiquiátricos sofreu uma queda significativa. A assistência às pessoas com transtornos mentais tem avançado cada vez mais no sentido de um atendimento integral ao usuário e seus familiares. O modelo de atendimento proposto hoje é baseado nessa inserção familiar e social. Para isso, o poder público, refletindo as conquistas sociais, vem constituindo uma rede de atenção à saúde mental substitutiva. São serviços abertos de atenção diária ao usuário de saúde mental e seus familiares. A rede de saúde mental é extensa e envolve as unidades básicas de saúde, Centros de Atenção Psico-Social, enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais, consultórios de rua, residências terapêuticas, centros de convivência e cooperativa, dentre outros dispositivos.
A questão que coloco é COMO esses dispositivos vem sendo instituídos? Como a Lei 10216 vem sendo operacionalizada?
Precisamos ter clareza que, mesmo com as indiscutíveis mudanças, a realidade atual tem nos preocupado sobremaneira e o entendimento é que todos estamos implicados com os rumos dessa situação. A reforma psiquiátrica tem sido um tema difícil de ser assimilado pela sociedade, devido aos preconceitos e temores arraigados que não se alteram com leis. Transformar conceitos antes considerados até mesmo “científicos”, como por exemplo, a idéia da periculosidade, uma associação da loucura com violência e com criminalidade.
Reconhece-se que a sociedade brasileira vive hoje uma espécie de retrocesso em muitos aspectos, fazendo retornar, em diferentes campos concepções conservadoras e incompatíveis com as políticas traçadas a partir da redemocratização do país. A perspectiva higienista e excludente tem se tornado visível em muitos contextos, e tem sido amplamente sustentada pelos meios de comunicação e grande parte da sociedade, inclusive profissionais e executores de políticas públicas.
É preciso ter claro que a proposta de desconstrução do manicômio pressupõe muito mais do que a superação física do hospital psiquiátrico. Pressupõe também a mudança de mentalidade, a superação da lógica da exclusão que este aparato concentra na nossa cultura, no direito, no trabalho, na família e em toda a sociedade.
Nesse sentido, é necessário distinguirmos desospitalização e desinstitucionalização. Podemos até tirar os loucos dos manicômios, mas podemos mantê-los institucionalizados em um lugar social de menosvalia, podemos mantê-los com o permanente rótulo da exclusão.
A exclusão, a violência e a violação dos direitos humanos constituem o produto do projeto manicomial infelizmente ainda existente em muitos espaços. A tendência da sociedade ainda continua sendo a de isolar, segregar os diferentes. Questionamos a partir daí: o manicômio é um lugar? Um lugar dentro ou fora de nós? Não há uma ideologia que exclui e segrega a diferença? A medicalização leva em conta o sofrimento psíquico ou a docilização dos corpos? Qual o modelo de saúde mental que temos? Qual a política de saúde mental que queremos?
Saúde mental em muitos contextos da nossa sociedade parece que tem sido pensada como uma condição em que as idéias são homogêneas, comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, jamais permitindo que se faça algo inesperado.
Só a titulo de ilustrar nossas reflexões, faço aqui uma referencia ao escritor Rubem Alves que a partir de uma lista das pessoas que segundo ele tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a nossa alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Cecília Meireles, Maiakovski. Diz que se assustou ao identificar que Nietzsche ficou louco, Fernando Pessoa era dado à bebida, Van Gogh matou-se, Cecília Meireles sofria de uma depressão crônica. Maiakovski suicidou-se. Para o escritor, essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Já caminhando para o final dessas reflexões. Podemos afirmar que, em síntese, a reforma psiquiátrica em curso se desdobra em três planos: assistência, jurídico e político e sociocultural.
1. PLANO ASSISTENCIAL
- Trata-se de pensar modelos de cuidados e atenção adequados aos novos dispositivos que têm objetivos bem mais abrangentes que a clínica individual. A clínica deve avançar na elaboração de dispositivos teóricos e de formas de atuação que abranjam, além do foco no sujeito, o alcance da rede, na perspectiva da clínica ampliada, com a incorporação de diferentes estratégias terapêuticas em diferentes perspectivas teóricas. Uma clínica da autonomia e não da tutela.
2. PLANO JURÍDICO E POLÍTICO
- À discussão sobre direitos humanos e a defesa da dignidade da pessoa, somam-se a discussão sobre direitos civis e sociais das pessoas com transtornos mentais e ampliação da sua autonomia. Este debate se insere no campo da cidadania, ultrapassando os limites da argumentação médica ou psicológica.
3. PLANO SOCIOCULTURAL
- O desafio é fazer da loucura e do sofrimento psíquico uma questão que ultrapasse as fronteiras do discurso técnico, e do saber psiquiátrico em especial.
- Há que se pensar na dimensão existencial e humana que fica escondida atrás de linguagens e protocolos médico–psicológicos, e criar estratégias de trazer para o debate público do tema atores de diversos segmentos sociais.
- Trata–se de promover uma desconstrução social dos estigmas e estereótipos vinculados à loucura e à pessoa com transtorno mental, substituindo–os por um olhar solidário e compreensivo sobre a diversidade e os descaminhos que a experiência subjetiva pode apresentar.
E agora para fechar, apontamos alguns desafios identificados nos desafios na implementação da política de saúde mental para os quais temos o DEVER de buscar saídas:
- Transformação da cultura manicomial ainda presente nos profissionais de saúde e na população é uma inequívoca fonte de resistência que produz riscos de reprodução do modelo asilar e manicomial nos serviços substitutivos;
- Organização e consolidação de uma rede de atendimento e de um conjunto de trabalhadores atuando sob uma configuração transdisciplinar e na perspectiva de uma clínica ampliada, provocando reordenamentos institucionais;
- Lacunas e distorções na formação dos profissionais de saúde (psicólogos, médicos, enfermeiros, etc.) que ainda pensam na pessoa com transtorno mental como objeto de intervenção e não como sujeitos;
- Implementação de uma política de assistência farmacêutica que garanta o acesso à medicação e o uso racional de medicamentos, evitando a medicalização dos fenômenos sociais;
- Garantir o envolvimento, mobilização e compromisso entre gestores e organizações profissionais, movimentos populares e do campo da reforma psiquiátrica, como o movimento antimanicomial, organizações de usuários familiares, para ampliar a participação e o controle social.
- Manter como princípio ético e político fundamental o diálogo entre os diferentes segmentos da rede de saúde mental, na qual não há espaços para narcisismos. Diálogo esse que não se trava com a violência dos atos ou palavras, mas que deve apostar na nossa humanização. Não existem serviços humanizados se os profissionais estão desumanizados.
A superação do modelo manicomial e hospitalocêntrico é compromisso de todos nós e demos sempre nos indignar diante da violação de direitos, muitas vezes apelidada de “tratamento” é dever de toda a sociedade. São muitas parcerias.
Implantar e manter os serviços é papel dos gestores.
Formar profissionais que possam manter a capacidade de se indignar diante da perspectiva excludente e desumana da sociedade “que vê sem olhar” é dever da universidade.
Outra parceria importante para a materialização dessas mudanças é com os meios de comunicação. Se no início do movimento antimanicomial a imprensa teve um papel fundamental ao veicular histórias e imagens da barbárie que acontecia dentro dos muros do hospício, hoje tem contribuído para uma grande confusão de conceitos fora destes muros. É indiscutível que a sociedade está vivendo um retrocesso que está sendo alimentado por essa mídia.
Precisamos identificar na sociedade outros parceiros chaves.
Defendemos, em consonância com os princípios da luta antimanicomial, uma sociedade que tenha como valor a liberdade, a igualdade e a justiça social e promova o cuidado das pessoas em sofrimento psíquico em meio aberto – no seu território, na sua comunidade. Isso só se constrói investindo em serviços e políticas públicas inclusivas e comunitárias e que respeitem a autonomia do sujeito, o direito a liberdade e as diferenças individuais.
O slogan da frente nacional da luta antimanicomial este ano é:
“Saúde não se vende, loucura não se prende – quem está doente é o sistema social”