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UM ABRAÇO NEGRO! POR UM MUNDO SEM FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS!

Dia 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra, uma data muito cara para a Psicologia, pois pontua a reflexão sobre direitos humanos, constituição social, identidade entre outras. O Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso do Sul convidou algumas especialistas no assunto para dar vez e voz sobre essa questão, nos canais institucionais de comunicação do CRP 14/MS.

Assim, temos o prazer de compartilhar um texto assinado pela Doutora em Psicologia Social (PUC/ SP). Master in Gender and Development (ISS/ NDL). Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Humanas (FCH) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Jacy Corrêa Curado, que gentilmente produziu o texto abaixo exclusivamente para o CRP 14/MS e os leitores do site.  

 

 

 

UM ABRAÇO NEGRO!   POR UM MUNDO SEM FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS!

Jacy Corrêa Curado.

Escrevo esse texto a partir das minhas reflexões e vivências de psicóloga social brasileira que mora em um país que concentra a segunda maior população negra do mundo, e que passou quatro, dos seus cinco séculos, sob o regime de escravidão.   Esses dados históricos – demográficos seriam suficientes para nos preocuparmos com os possíveis efeitos na constituição da identidade psicossocial e o impacto do racismo na vida cotidiana da população negra. Mas incrível que nos pareça, os psicólogos franceses ou ingleses tem uma maior produção ou interesse por essas questões que os nossos colegas brasileiros. 

 A Psicologia Brasileira aderiu de pronto às teorizações brancas, ocidentais, eurocêntricas, anglo-americanas, e quando muito o discurso da democracia racial que tornaram invisíveis e intocáveis quaisquer alusão ao racismo, sexismo e outras formas de xenofobia. Como é possível em um país composto por tamanha diversidade étnica racial negar esse fato na produção de seu conhecimento técnico científico? Pois todos (as) brasileiros (as), senão os indígenas viemos de algum ‘outro’ lugar desse planeta terra! Portanto, como psicóloga social tenho me dedicado a problematizar as identidades de gênero e étnico-raciais na psicologia social e procurado dialogar teoricamente com colegas que de forma quase isolada, parcial e resiliente têm escrito sobre o tema, como os autores da Psicologia Social do Racismo da Coleção de Psicologia Social da Editora Vozes, as teorizações sobre brancura e branquetude de Maria Aparecida Teixeira Bento, o maravilhoso texto sobre “Violência do Racismo” de Jurandir Freire Costa, o livro “Tornar-se negro” da Neusa Santos Souza, além de outros que uso em minhas aulas e supervisões de estágio.

Das questões importantes trazidas pela Psicologia Social, a que mais tem me instigado, e é tema de nosso Grupo de Estudos em Comunidades Identitárias (GECI) são as problematizações das políticas de identidade, particularmenteas formas de enfrentamento e combate, nesse caso ao racismo.

Em um texto instigante Bader B. Sawaia (2004) “Identidade: uma ideologia separatista” faz uma reflexão dos conflitos sociais oriundos da concepção de certa identidade ‘etiqueta’ concebida como imutável ao longo da existência, que separa e aprisiona o indivíduo na sua interioridade.   Essa identidade etiqueta se diferencia da identidade múltipla das recentes teorizações psicossociais, que a entende como um processo em construção, de um modo de ser e estar no devir do confronto entre igualdade e diferença, sendo mais metamorfose do que algo estático, permanente e dado pela natureza biológica do ser humano.   Aflexibilização e liquidez são crescentes na forma de pensar a identidade por autores da modernidade tardia, como Giddens (2002), Bauman (2005) e Hall (1998) que questionam a fixidade dos atributos identitários radicalizando em sua fragmentação e fluidez tornando-a híbrida e deslocada, como as identidades ‘liquida’, ‘cabide’ e ‘cosmopolita’ tão bem analisadas por Bauman (2003).

Essas teorizações nos liberariam de quaisquer fronteira se ‘caixinhas’ dadas por uma condição única, seja ela de cor, território, religião etc. e, portanto desnaturalizaria o debate racial.  Será que um negro necessariamente teria que gostar de samba, futebol e carnaval? A música clássica, o tênis e o balé, por exemplo, não podem fazer parte do repertório cultural de uma pessoa negra? O candomblé, a umbanda com seu culto às forças da natureza seriam religiões somente para afrodescendentes?    Deveríamos instituir como território negro, as favelas, guetos e barracos, e o branco, as zonas ‘sul’, os salões de baile e os altos jardins? Não é uma discussão fácil, mas temos que encará-la, não como uma contradição, inversão ou deslocamento, mas como possibilidades, escolhas, misturas e transformações, reconhecendo que essas oportunidades são constrangidas também pelas relações sociais de gênero, classe, raça e processos de colonização dada pela sociedade capitalista.

Ao confrontar as realidades raciais brasileiras com meus estudos psicossociais reconheço o quanto estamos longe de alcançarmos uma democracia identitária ‘humana’, em que todos possam transitar, trabalhar amar, comer, ouvir, se divertir usufruindo o que de melhor esse mundo já produziu e produz, seja o samba, a opera, o futebol, o ténis, o vatapá ou o Petit Gateau!

Assim quero finalizar esse texto emprestando os dizeres de um autor que tem contribuído com nossas reflexões psicossociais ao questionar a cacofonia de vozes dada pelo multiculturalismo que estaria impossibilitando cantar uma canção em uníssono:

 Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só. 
poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir
do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e  
responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual 
capacidade de agirmos em defesa desses direitos
(BAUMAN, 2003 p.134)

Enquanto vivemos em meio a um racismo sutil e extremado que viola as regras da afetividade e racionalidade humana acredito que devemos ‘todos (as)’ nos importar com as mazelas desse mundo, os brancos com o racismo, os indígenas com o meio ambiente, as mulheres pobres com as homofobias, as feministas com a corrupção, os negros com o aquecimento global, enfim, seria o mínimo para sermos considerados verdadeiramente ‘humanos’ e podermos nos abraçar, apesar de nossas diferenças, digo ‘abraçar’, não somente respeitar!

 

Referências

 

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2003.

 

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista à Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: J.Zahar Editor, 2005.

 

GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar Ed.,2002.

 

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 6.ed. Rio de Janeiro:DP&A, 1998.

 

SAWAIA, Bader B. Identidade: Uma ideologia separatista ? IN: As artimanhas da Exclusão. Ed. Vozes. 2004.